Bates Motel e a Maternidade Tóxica

03/11/2019

Antes de qualquer coisa, duas observações precisam ser feitas: (1) Este texto foi escrito para aqueles que já viram o seriado ou que não se incomodam em saber alguns detalhes do enredo antes de assisti-lo. (2) Conforme o título revela, este é um texto sobre maternidade, tendo em vista o fato de estar baseado no seriado que retrata a relação entre mãe e filhos, mas é óbvio que tudo o que é dito aqui também aplica-se a pais.

Dito isso, passemos ao texto:

Acabei de assistir ao seriado Bates Motel. Decidi assisti-lo devido à indicação de uma amiga virtual. Iniciei sem que tivesse nenhuma informação prévia a respeito do seriado, nem mesmo de que se baseia no filme Psycho de Hitchcock. No primeiro episódio, já fiquei presa à narrativa, desejando ver o que aconteceria em seguida.

Em resumo, poderia dizer que todo o enredo concentra-se, a meu ver, nos desdobramentos de conflitos familiares mal-resolvidos: há a moça que descobre, após ter sido assassinado, que o pai era adúltero e que - após ter fingido a própria morte - não fez a menor falta para a própria mãe; o delegado honesto que teve de carregar o fardo de ser filho do delegado corrupto; a mãe que abandonou a filha doente, na busca de "ser feliz"; o filho nascido de uma relação incestuosa; a professora carente que cortou relações com o pai, traficante de maconha... Enfim, a vida dos principais personagens é marcada por complexos dramas familiares.

Para alguns, talvez possa parecer uma forte crítica à família como tal. Para mim, no entanto, Bates Motel retrata muito bem o quão dolorosa a vida humana pode tornar-se quando optamos por fazer-de-conta que os problemas não existem e que, com o passar do tempo, resolver-se-ão por si mesmos, ou quando, por outro lado, tentamos "resolvê-los" usando a vingança-imaginária, isto é, causando a outros o mal que nos fora causado.

Como o nome sugere, o ponto-central do enredo de Bates Motel é a vida da família Bates, principalmente Norma e Norman Bates, mãe e filho. Norma Bates é uma mulher sofrida, por diversas vezes abusada, que, ao passar pelos horrores da vida, fechou-se cada vez mais em si mesma, a ponto de abandonar emocionalmente um filho e fazer do outro (Norman) uma mera extensão sua desde o nascimento.

Embora Norma não tenha tido culpa de muito do que sofreu, especialmente durante a infância, sua escolha, a vida inteira, foi a de fingir que nada daquilo ocorrera e tentar recomeçar varrendo sempre a verdade para debaixo do tapete, com a bela desculpa de estar protegendo o frágil filho e sacrificando-se para ser a melhor mãe do Mundo.

Em sua caminhada, Norma encontrou pessoas que se arriscaram, sinceramente, a ajudá-la, mas, na tentativa de "poupar" o filho de qualquer dor e frustração, ela sempre escolhia o caminho da mentira, do faz-de-conta, vivendo, aos olhos de todas as outras pessoas (incluindo o próprio filho), uma fantasia. Nessa medida, toda vez que alguém tentava ajudá-la, tinha, na ponta da língua, os típicos argumentos: "você é mãe?"; "quem você pensa que é para falar sobre meu filho?"; "você não pode dar palpite a respeito da minha vida"; "a única pessoa que conhece meu filho e pode ajudá-lo sou eu".

Norma passou a vida vendo o filho como uma pessoa fraca e incapaz de encarar as dificuldades. Sua maior preocupação sempre foi assegurá-lo de que ela cuidaria de tudo e o protegeria de todo e qualquer infortúnio. Ela estava sempre no controle. Sentia-se autossuficiente e todo-poderosa.Tinha grande necessidade de sentir-se mãe, de oferecer a seu filho todo o afeto que não recebeu dos próprios pais. E, para tanto, estava disposta a sacrificar cada segundo de sua própria vida e cada gota de seu próprio sangue, não para que seu filho fosse um ser humano bem-criado e preparado para a vida, mas para que ela mesma sentisse que tinha feito um bom trabalho e tinha sido muito melhor do que sua própria mãe o fora. Norma escolhia por Norman e nunca permitia que fosse responsável por seus atos.

No fundo, o afeto de Norma enraíza-se no egoísmo, no orgulho e na vaidade. Sua intenção é mostrar a si mesma o quão boa é para o filho, o qual se torna completamente dependente dela. Dependência essa que o faz sentir-se tão em dívida com a mãe que jamais passaria por sua cabeça a possibilidade de ter vida-própria. O egoísmo de Norma condenou Norman a jamais ser alguém, a jamais ter autonomia e caminhar com as próprias pernas.

Em oposição a Norma e Norman, há Emma e Dylan. Ela, após ter sido abandonada pela mãe, cresceu "condenada à morte" e, por isso, não tinha o menor medo de morrer. Seu único medo era o de viver uma miserável vida sem propósito. Tinha necessidade de amar e de ser amada. Não pertencia aos grupos das meninas "cool" da escola, e acabou por afeiçoar-se pelo novato Norman Bates, tão inadequado ao ambiente escolar quanto ela.

Uma das cenas mais marcantes é aquela em que Emma, após saber que tem, finalmente, a oportunidade tão esperada de ter uma via longa, revela seu medo de, ao receber um novo pulmão que aumente sua expectativa de vida, acabe por transformar-se em um simples corpo, constantemente estudado, monitorado, perfurado e costurado. Em sua opinião, mais valia viver uma vida curta, mas verdadeiramente humana, do que uma vida longa, mas superficial, voltada exclusivamente à manutenção da matéria.

Dylan, à semelhança de Emma, tinha sede de sentido. Desejava relacionamentos profundos e sinceros, ainda que lhe fossem terrivelmente penosos. Estava sempre disposto a sacrificar-se pelos outros. Fazer parte de uma família imperfeita era muito mais importante do que não pertencer a família nenhuma. Ele, o filho "abandonado", deixado à própria sorte, foi justamente o que deu certo.

Penso eu que algumas conclusões podem ser tiradas de Bates Motel. A primeira delas acredito ser algo que é repetido no seriado mais de uma vez: a de que há limites que não devem ser ultrapassados. A maternidade dá à mulher a perigosa oportunidade de sentir-se no controle da vida do filho. A sensação de poder, o "bancar Deus" na vida do filho, escrever sua história e realizar-se nele, é algo que pode levar um ser humano muito facilmente a ultrapassar a linha da autoridade legítima e adentrar o campo do abuso-de-autoridade, tudo "em nome do amor".

A segunda conclusão é a de que subestimar as pessoas e tratá-las como fracas impede-as de tornar-se fortes. (frase dita por Dylan a Norma, não exatamente nos mesmos termos). Toda tentativa feita por Norma para proteger o filho apenas o condenou à mentira, à insanidade, às trevas e à maldade. Tratá-lo como incapaz tornou-o de fato, incapaz.

Outra coisa que o seriado deixa claro é que "não há nada escondido que não venha a ser revelado" (Lucas 8:17). Por mais que Norma tenha tentado, ela não foi capaz de esconder todas as mentiras, que cresciam como bola de neve, sob o tapete. Gosto muito deste trecho do livro 12 Regras para a Vida, de Jordan Peterson: "Não esconda filhotes de monstros debaixo do tapete. Eles desenvolvem-se. Então, quando você menos esperar, saltarão do esconderijo e o devorarão". Toda tentativa de Norma de dar a seu filho uma vida livre de toda dor e frustração, escondendo até mesmo dele próprio seus problemas acabou por transformá-lo no monstro que a devorou.

Por último, a lição deixada por Dylan e Emma: cortar o cordão umbilical é preciso! Filhos não são propriedade da mãe nem extensão sua. Tentar viver a vida do filho acaba por destruir a vida de ambos, mãe e filho. Assim sendo, em uma relação familiar tóxica, muitas vezes, o melhor a fazer é tentar ajudar apenas na medida do possível, de forma a não se deixar sugar pela areia movediça na qual os familiares meteram-se e, o mais importante: iniciar uma nova história baseada, incondicionalmente, na verdade, no amor e no perdão, não importa o quão dolorosa seja.

Fonte

Gleice Queiroz.

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